Estréia no canal d’ A Casa de Vidro- https://youtu.be/VNuahjL0X-w
Sístole, diástole; sístole, diástole: é o ritmo da vida encarnada. É o pulsar interno, carnal-concreto, que une os humanos a todos os outros seres dentro de quem também bate um coração. No core do ser vivo, um drummer incessantemente vai bombeando sangue, até mesmo enquanto dormimos, batuqueiro vitalício do tórax. Como cantam em esplêndida canção garage-punk os The Kills: “the heart is a beating drum.” É este ritmo vital que se cala na aurora triste do clipe de “O Tempo É Sua Morada” (espie o que quase 2 milhões de pessoas já acessaram – https://www.youtube.com/watch?v=783qJgyQnno…): a morte do outro, a agonia do luto, é a enrascada existencial de que se parte. É aí que a Francisco, el Hombre instaura seu drama, na mais profunda canção que lançara desde “Triste, Louca ou Má”.
No belíssimo videoclipe, sístole e diástole, que tinham se calado no começo, hão de retornar ao final. A vida insiste, e o morto “revive” através de órgãos doados que vão alimentar a vida móvel de outro corpo. Este é um daqueles raros videoclipes que mais se parece com um curta-metragem, e daqueles que nos choca com o fato de que algo tão rápido pôde nos comover e impactar tanto.
A melancolia folk do violãozinho quase Nick Drake que inaugura a canção evoca já a morte, ou a depressão que a morte de um ser amado ou sua premonição para nosso próprio ser nos gera; morte que a banda quer aqui transfigurar em seu sentido. Com farta inspiração no Dia de Los Muertos mexicano. A voz de Ju Strassacapa então chega e nos transpassa com seu timbre cortante, entregando uma letra repleta de cotidianidades (Pão quentinho sobre a mesa/O cheiro sobe a escada/Seu canto e gargalhada/Ecoando pela casa) que estão sendo rememoradas (“se o vento te levou/o tempo é sua morada”), através do prisma de uma melancolia em vias de transformar-se em sabedoria: “não vou te esquecer, vou te celebrar.”
Em algumas ocasiões, papeando com Gomes n’A Casa de Vidro, pelas beiradas dos ensaios da Mundhumano, ele me falou fartamente do quanto a banda se nutriu da vivência mexicana; composta por dois irmãos originários do México, a Francisco El Hombre levou sua trupe para tocar na capital (Cidade do México) durante as festividades “de los muertos”, e tudo indica que não teria nascido “O Tempo É Sua Morada” sem este influxo desta vivência. Fico pensando que um dos maiores baratos de ter banda é poder ter a vida atravessada por uma partilha de experiências assim, seguida por sua síntese em obra-de-arte.
Cá em Goiânia, foi uma das que mais me emocionou do show-despedida. Neste vídeo, tentei condensar em 3 minutos – incluindo entrevista de Mateo à Rolling Stone (excerto) e fala de Ju no intróito da belezura – entremeadas com a performance ao vivo da canção acompanhada por belíssimo coro da galera (sobretudo as minas) goianienses presentes ao Cererê.
O vento do tempo há de levar todo mundo pra tumba, cada um de nós prometido (eu diria até condenado) à “morte eterna” aludida por Lucrécio. Mas aos que nos sobreviverão (por um tempo) e a nós que também estamos condenados a sobreviver às mortes de outrem (por um tempo), canções assim são baita nutrição anímica. Injetam, parece, em nossos corpos, através da alquimia dos sons e dos sentidos da poesia, aquilo mesmo que dá ânimo ao core para seguir – sístole, diástole; sístole, diástole; até o silêncio final, pois todo batera um dia cai na sepultura e com o batera do nosso tórax não seria diferente…
“Não levo dor e nem tristeza
Ponho as cartas sobre a mesa
E a ferida cicatriza
Todo apego um dia passa
E o amor vira certeza
O tempo é sua morada
Se o vento te levou,
O tempo é sua morada…”
ASSISTA: FRANCISCO EL HOMBRE, AO VIVO EM GOIÂNIA, COM “O TEMPO É SUA MORADA”: https://youtu.be/VNuahjL0X-w.
FOTOS:
TUDO DEVE MUDAR – Apoteótica despedida da Francisco El Hombre no Martim Cererê: um brinde a este louco viver com uma das melhores bandas do planeta… 🔥
Eles entregaram tudo. Sem retenção nem poupança, com um nível de fervura e soltura realmente estratosféricos, transformaram o Martim Cererê em uma panela-de-pressão onde fritamos com gosto. Com presença de palco abrasadora, a Francisco El Hombre usou sua arte incendiária, suas posturas desinibidas, sua arte-manifesto indomável, pra fazer tudo pegar fogo. Assim celebrando o fim de ciclo com um “brinde a este louco viver” (pra mencionar a música “Hoje É Segunda-Feira”, do derradeiro álbum dos caras, “Hasta El Final”).
Já na reta final de sua turnê de despedida, antes do hiato por tempo anunciado, a banda comprovou mais uma vez sua capacidade incomparável de utilizar sua música incandescente, seu caldeirão de latinidades, suas atitudes queer-punk, seus manifestos antifascistas, pra botar o público em estado de êxtase coletivo. Talvez só o Baiana System com seu navio pirata soteropolitano, na música brasileira contemporânea, pode rivalizar com a Francisco no quesito “show capaz de levar a galera ao transe”. Este é um primeiro vídeo que captura, em estado bruto, sem retoques nem edições, o flow do show já encaminhando-se para seu fim. A palavra que se impõe para descrever a sensação gerada por este esplendoroso concerto-de-rock é mesmo “apoteose”, desde que dispamos o termo de um subtexto religioso: a Francisco El Hombre é a apoteose de uma espécie de rito pagão, libertino, hippie-punk, que remete a outros grupos calientíssimos no palco do globo como o Gogol Bordello ou o Kumbia Queers.
Tudo conspira aqui para convidar os presentes à mistura de suores e vozes num caldeirão que ferve as individualidades e as funde numa sopa dionisíaca altamente nutritiva. A bandaça, com química impecável, teve plena entrega física e anímica, consagrando-se fartamente junto ao público goianiense, que cantou a plenos pulmões os hits-do-underground como este: “o dólar vale mais que eu, eita fudeu… vale mais que eu.”
Publicado em: 22/03/25
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia